EPISÓDIO DE HOJE: QUEM TEM BOCA VAI À ROMA
A história em questão sucedeu-se no fim do século XIX no município de Dom Pedro, interior do Estado do Maranhão e berço deste que vos fala. Ali vivia uma moça por nome Nenê Estevam, filha do Velho Estevam e da Dona Libânia.
A coitada era muito conhecida por sua feiúra. Falava-se que sua testa ia até metade da altura da cabeça e que havia uma ligeira corcunda na sua silhueta. No rosto, os lábios finos e bicudos e o nariz apontando para baixo pareciam acentuar mais ainda a linha escura formada pelo bigode que herdara da avó materna. Além disso, ela pouco cresceu. Dessa forma, sem muitos detalhes, podemos concluir que a jovem era realmente muito feia.
Mas feiúra não implica necessariamente falta de sorte, então a vida presenteou-a com um pai muito rico que era proprietário de um invejável rebanho bovino e uma tropa de burros. Leia-se que “um invejável rebanho bovino” para aqueles tempos era bem menos que “um invejável rebanho bovino” para os dias de hoje, mas ainda assim invejável. Para completar, não quis o Velho Estevam abusar dos falhos potenciais genéticos e achou por bem encerrar ali mesmo sua linha sucessória.
Na época em que decorre a nossa história um grande circo vindo de Codó chegou à cidade e logo armou tenda. Eram muitos palhaços, animais, malabaristas e outros mais que fizeram a sensação de Dom Pedro por algumas semanas.
O circo em si não nos interessa, mas sim um rapaz que fazia malabares e era a grande atração do espetáculo. O jovem, ninguém sabe como, tomou conhecimento da solitária Nenê Estevam e de tudo mais que era agregado ao seu sobrenome, e não tardou em visita-la. Vestiu-se em todos os aspectos com a mais delicada cordialidade e bateu-lhe à porta sorrindo as melhores intenções. Conversa vai, conversa vem... E logo conquistou a simpatia ingênua do velho criador de gado. Dias depois, marcada a data do casório, disse adeus ao circo que o trouxera até ali e mudou-se para a fazenda dos Estevam.
O outrora malabarista comportava-se como se tivesse crescido entre estrumes e carrapatos. Era um exímio conhecedor da prática da ordenha e manejo de pastos, sem falar que era extremamente zeloso com a higiene dos burros que compunham a tropa do já sogro. Em casa, ele não media carinhos à esposa que esbanjava satisfação com o homem com quem casara. E assim o nosso artista ganhou a confiança de tudo e de todos.
Quando a esmola é grande o cego deve desconfiar, mas o Velho Estevam nem era cego e nem desconfiou, portanto concordou quando o jovem sugeriu que fossem vendidos os bois para que um comércio respeitável fosse montado na cidade. Alegou o moço que fora criado no seio comercial de sua família e conhecia bem as matemáticas do dinheiro, logo fazia certo investir na idéia. Todos aceitaram.
Desfeito o rebanho, iniciaram-se os preparativos para a estruturação do estabelecimento. Propôs o malabarista que fossem ele e a esposa para São Luís a fim de comprar tecidos e outras novidades que poderiam ser vendidas no futuro comércio. O sogro aprovou e até achou mais coerente, visto que se encontrava em idade avançada. Despachou os dois para Codó com toda a renda de “um invejável rebanho bovino” e desejou-lhes uma boa viagem.
O casal tomou alguns burros e seguiu em direção à estação ferroviária que os levariam até a capital maranhense. Chegando lá, demonstrou o esposo grande preocupação com a mulher e achou por bem que a mesma retornasse para casa, recomendando-a que estivesse ali na semana seguinte para ajudar com a carga que havia de trazer. Ela concordou, mas desejou assistir a partida do amado antes de tomar o rumo de casa.
O Velho Estevam fez questão de recepcionar o genro na sua chegada, portanto tratou de vestir uma boa roupa e aguardar o rapaz na estação de trem.
Conforme combinado, na quarta-feira seguinte estavam a esposa e o sogro à espera do malabarista que ficara de voltar de São Luís naquele dia. Os dois olhavam atentamente as pessoas descerem do trem, as bagagens serem retiradas, mas não viam qualquer sinal do bom moço que voluntariamente se prestara a comprar todas as mercadorias e traze-las em total segurança. Concordaram então que um problema ocorrera e seria melhor continuar na cidade esperando o próximo trem que chegaria em dois dias, pois nele certamente viria o rapaz.
Acontece que o grande salvador de Nenê Estevam não chegara nem no próximo trem e nem nos seguintes, causando grande dúvida no velho que lho confiara toda a sua fortuna. Depois de esperar por semanas, concluíram todos que um grande golpe fora ali executado e a família Estevam estava então arruinada.
Dizem os antigos que depois do ocorrido a filha tomou sumiço e nunca mais foi vista. O velho, coitado, perdeu o apetite de todas as coisas e faleceu de fome e tristeza por ter visto sua fortuna ir embora desejando ainda que tivesse uma boa viagem.
Sobre o rapaz, cogita-se que tenha embarcado num navio e tomado rumo desconhecido, visto que naquela época os roteiros eram percorridos via mar.
E assim foi a história de Nenê Estevam, o Velho e o Malabarista, conforme contou a minha avó.
Um abraço.
Adagga